Jair Pintou Um Clima Bolsonaro (Foto: Marcos Corrêa/PR).

“Quase no mesmo instante o telefone me despertou, e a voz enferrujada de Rosa Cabarcas me devolveu à vida. Você tem uma sorte dos demônios, disse ela. Encontrei uma franguinha melhor do que você queria, mas tem um porém: ela tem uns 14 anos. Eu não me importo em trocar fraldas, disse a ela em tom de burla e sem entender seus motivos. Não é por você, disse ela, mas quem vai cumprir por mim os três anos de cadeia?”.

“Ninguém, e ela ainda menos, é claro. Fazia sua colheita entre as menores de idade que se exibiam em seu armazém, e que ela iniciava e espremia até passarem a vida pior, a de putas diplomadas no bordel histórico da Negra Eufemia. Nunca tinha pago uma única multa, porque seu quintal era a arcádia da autoridade local, do governador até o último bedel da prefeitura, e não era imaginável que à dona daquilo tudo faltassem poderes para delinquir a seu bel prazer. Assim, seus escrúpulos de última hora só tinham como justificativa poder levar vantagem com seus favores: quanto mais puníveis, mais caros. A questão se arranjou com um aumento de dois pesos na tarifa dos serviços, e combinamos que às dez da noite eu estaria em sua casa com cinco pesos em dinheiro, adiantados. Nem um minuto antes, porque a menina tinha que dar de comer aos irmãos menores e pôr na cama sua mãe entrevada pelo reumatismo”.

“Entrei no quarto com o coração desvairado e vi a menina adormecida, nua e desamparada na enorme cama de aluguel, tal e como sua mãe a tinha parido. Jazia meio de lado, de cara para a porta, iluminada pelo lustre com uma luz intensa que não perdoava detalhe algum. Sentei-me para contemplá-la da beira da cama com um feitiço de cinco sentidos. Era morena e morna. Tinha sido submetida a um regime de higiene e embelezamento que não descuidou nem os pêlos incipientes de seu púbis. Haviam cacheado seus cabelos e tinha nas unhas das mãos e dos pés um esmalte natural, mas a pele cor de melaço parecia áspera e maltratada. Os seios recém-nascidos ainda pareciam de menino, mas viam-se urgidos por uma energia secreta a ponto de explodir”.

“Tratando de não despertá-la, sentei-me nu na cama com os olhos já acostumados aos enganos de luz avermelhada, e revisei-a palmo a palmo. Deslizei a ponta do indicador ao longo de sua nuca empapada e ela inteira estremeceu por dentro como um acorde de harpa, virou-se para mim com um grunhido e me envolveu no clima de seu hálito ácido. Apertei seu nariz com o polegar e o indicador, e ela se sacudiu, afastou a cabeça e me deu as costas sem despertar. Tentei separar suas pernas com meu joelho por causa de uma tentação imprevista. Nas duas primeiras tentativas ela se opôs com as coxas tensas. Cantei em seu ouvido: a cama de Delgadina de anjos está rodeada. Relaxou um pouco. Uma corrente cálida subiu pelas minhas veias, e meu lento animal aposentado despertou de seu longo sono”.

“Pintou um clima”.

Os excertos acima são do personagem-narrador, um velho sem humanidade, da novela “Memórias de minhas putas tristes”, de Gabriel García Márquez.

Exceto o último, que é da lavra de Jair Bolsonaro, homem de poucas letras, mas de tanta imbrochabilidade que, ao notar que passara por “três, quatro, menininhas bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas”, parou na esquina, tirou o capacete, olhou para trás e deu meia-volta em sua motocicleta. “Posso entrar na sua casa?”. Entrou, não resistindo, também ele, a uma tentação imprevista.

Qual não deve ter sido o dissabor do velho ao saber que as jovens venezuelanas estavam “arrumadinhas” porque participavam, naquele dia, naquele momento, de uma ação social com curso de corte de cabelo e design de sobrancelha.

Mesmo assim, o velho, depois, em um podcast amigo, inventou suas próprias memórias sobre o episódio, as de um flerte deplorável, inimaginável, de um presidente da República com adolescentes refugiadas.

Jair Bolsonaro, também ele, não se importa em “trocar fraldas”.

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