A fé das ‘forças desarmadas’, os livros de lobologia e a posse do caçador no TSE

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Ainda durante a cerimônia de posse de Alexandre de Moraes na presidência do TSE, na noite desta terça-feira, 16, figuras tarimbadas da imprensa traziam o bastidor de que Jair Bolsonaro, ao chegar ao tribunal, fora conduzido a uma sala em desacordo com o lustro de um chefe de Estado, no que teria sido “resgatado” pelo próprio Moraes, que fez questão de ir pessoalmente escoltá-lo até alguma suíte presidencial.

Horas antes, Edson Fachin despachava pela última vez no seu turno à frente do TSE, autorizando o credenciamento de mais nove militares, três de cada força, para se juntarem a outros noves militares, três de cada força, na sala de inspeção dos códigos-fonte das urnas eletrônicas, e autorizando também a prorrogação da inspeção, antes prevista para terminar na última sexta-feira, 11, até a próxima sexta-feira, 19.

As mesmas figuras da imprensa saudaram o último despacho de Edson Fachin como um aceno aos militares para que Alexandre de Moraes, dito “mais político” que Fachin, pudesse assumir o TSE em clima de “distensão” com Bolsonaro, Ministério da Defesa e Forças Armadas, na esperança de que assim, supostamente ganhando tempo e apostando na força das qualidades democráticas, o processo eleitoral de 2022 transcorra em paz.

Isto não obstante o novo vice-presidente do tribunal, Ricardo Lewandowski, ter publicado há poucas semanas um artigo comparando os ataques de Bolsonaro e de militares ao processo eleitoral à fábula do lobo e do cordeiro, cuja moral da história recomenda precisamente o contrário do que as “forças desarmadas” ora tentam fazer: “tentar evitar o mal daquele que já decidiu cometê-lo? Perda de tempo!”.

Na fábula de Esopo, o lobo acaba jantando o cordeiro mesmo após o cordeiro apresentar argumentos lógicos de que não seria justo, honesto, democrático, republicano que as coisas terminassem assim à beira do rio da História. “Você tem resposta para tudo, não é? Mas vou devorá-lo mesmo assim, tá ok?”, diz o lobo, no fim das contas mandando às favas não exatamente os escrúpulos, coisa que o lobo nunca teve, mas os pretextos.

‘Vai haver eleições em 66’

Porém, parece que as “forças desarmadas”, agora com o TSE dirigido por aquele que é tido como o grande caçador de personagens antidemocráticas – por mais que ele próprio tenha chegado aonde acaba de tomar posse por força de um golpe de Estado -, parece que as “forças desarmadas”, dizíamos, resolveram tomar por guião por uma versão alternativa da fábula do lobo e do cordeiro, escrita na década de 1960 por Millôr Fernandes.

Esta:

O lobo e o cordeiro

Estava o cordeirinho bebendo água, quando viu refletida no rio a sombra do lobo. Estremeceu, ao mesmo tempo que ouvia a voz cavernosa: “Vais pagar com a vida o teu miserável crime”. “Que crime?” – perguntou o cordeirinho, tentando ganhar tempo, pois já sabia que com o lobo não adianta argumentar. “O crime de sujar a água que bebo”. “Mas como sujar a água que bebes se sou lavado diariamente pelas máquinas automáticas da fazenda?” – indagou o cordeirinho. “Por mais limpo que esteja um cordeiro é sempre sujo para um lobo” – retrucou dialeticamente o lobo. “E vice-versa” – pensou o cordeirinho, mas disse apenas: “Como posso sujar a sua água se estou abaixo da corrente?”. Pois se não foi você, foi seu pai, foi sua mãe ou qualquer outro ancestral e vou comê-lo de qualquer maneira, pois, como rezam os livros de lobologia, eu só me alimento de carne de cordeiro” – finalizou o lobo, preparando-se para devorar o cordeirinho. “Ein moment! Ein moment!” – gritou o cordeirinho traçando o seu alemão kantiano. “Dou-lhe toda razão, mas faço-lhe uma proposta: se me deixar livre, atrairei pra cá todo o rebanho”. “Chega de conversa – disse o lobo – Vou comê-lo, e está acabado”. “Espera aí – falou firme o cordeiro – isto não é ético. Eu tenho, pelo menos, direito a três perguntas”.

“Está bem” – cedeu o lobo, irritado com a lembrança do código milenar da jungle. – “Qual é o animal mais estúpido do mundo?”. “O homem casado” – respondeu prontamente o cordeiro. “Muito bem, muito bem!” – disse logo o lobo, logo refreando, envergonhado, o súbito entusiasmo. “Outra: a zebra é um animal branco de listas pretas ou um animal preto de listas brancas?”. “Um animal sem cor pintado de preto e branco para não passar por burro” – respondeu o cordeirinho. “Perfeito!” – disse o lobo engolindo a seco. “Agora, por último, diga uma frase de Bernard Shaw”. “Vai haver eleições em 66” – respondeu logo o cordeirinho, mal podendo conter o riso. “Muito bem, muito certo, você escapou!” – deu-se o lobo por vencido. E já ia se preparando para devorar o cordeiro quando apareceu o caçador e o esquartejou.

Moral: quando o lobo tem fome não deve se meter em filosofias.

Como se Jair Bolsonaro, o general Paulo Sergio et caterva se metessem em filosofias.

Na apresentação de suas “Fábulas fabulosas”, Millôr escreveu assim:

“Muitas das fábulas aqui presentes já eram velhas no banquete de Baltazar e ainda serão novas quando o Brasil for uma democracia. Não pretendem ensinar nada senão que a paz na terra independe de nossa boa vontade, que a vitória na vida vem mais de nossos defeitos do que de nossas qualidades, e que só no dia em que um industrial espirituoso chamar de fé às suas escavadeiras a fé removerá montanhas”.

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